segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Mais uma bela croniqueta do António Manuel Camacho (Alf. da 3311)

O DESENFIANÇO
Como referi, para chegarmos a Lisboa no mesmo dia, era necessário apanhar a rodoviária à hora de almoço de sexta-feira.
A viagem, para além de cara e longa, ainda comportava o risco de sermos apanhados, fora do quartel, a horas desapropriadas, pelo menos dentro dos cânones da hierarquia militar.
Será redundante dizer que a licença de fim-de-semana só tinha validade após o toque de ordem, à sexta-feira, ao fim da tarde.
Como fazer para nos desenfiarmos, já que não havia tolerância para ninguém?
O mais comum, ou pelo menos o sistema que mais vi, era saltar o portão/gradeamento nas traseiras do quartel, que dava acesso à carreira de tiro e, daí, até à cidade, era um pulo.
A outra, era sair pela porta de armas, mas então, tínhamos que contornar o "supremo" Comandante, que, àquela hora, já estava de olho em quem saía e entrava.
Para tudo tem que haver uma solução e, para quem mais quer ver, normalmente, mais cego é.
Em Chaves havia um destacamento no chamado Forte de São Lourenço.
Este era constituído por uma secção, comandada por um furriel miliciano e umas quantas praças, a fim de manter a soberania (?) do local.
Quando pensávamos vir a Lisboa o que é que fazíamos?
Na véspera, íamos levar ao Forte um saco com roupa civil, que, na hora certa, trocávamos pela roupa militar e, daí, zarpávamos para a camioneta, ali a dois passos.
Havia uma dificuldade. Como chegar ao Forte sem ser visto e sem saltar o tal portão?
Facílimo, só o "Sarraquinhos" (alcunha do Comandante e nome da aldeia de onde era natural, perto de Montalegre) é que não via, por muito que estivesse de olho atento, na varanda do edifício do Comando.
No B. Caç. 10 havia um cabo que tinha um gipão enorme, com toldo de lona e que ia, todos os dias, almoçar a casa no centro da cidade.
De sua alcunha o "Estraga-a-Tábua" e, ao que dizem, embora cabo, não sabia sequer, escrever o seu nome. Era Pai de um dos melhores jogadores de futebol que conheci – o Pavão, que morreu no relvado, ao serviço do Futebol Clube do Porto.
Pois o "Estraga-a-Tábua", tal como as beatas de sacristia temem a Deus, ele temia, no mesmo sentido, tudo o que era oficial, miliciano ou não.
À hora de sair para ir almoçar, nós colocávamo-nos, num sítio estratégico, fora do domínio do Comandante, a pedir-lhe boleia, com a desculpa de termos de ir ao forte ou à cidade, tanto fazia, o que ele nunca punha em causa ou perguntava o por quê.
Dentro do veículo encostávamo-nos o mais possível para dentro, de modo a não sermos vistos da varanda do edifício que dava para a Porta de Armas.
Muito embora a sentinela fizesse o cumprimento da ordem (ombro arma se não me engano, pois ia a sair um oficial), como tínhamos o salvo-conduto do veículo onde éramos transportados, nada fazia supor que íamos desenfiados e assim conseguíamos o nosso fim.
Pela sua honestidade, daqui lhe presto a minha homenagem e peço desculpa pelas malandrices que lhe pregámos

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